10 de fevereiro de 2012

A crise de solidariedade europeia e a ameaça do diretório


Um dos aspectos mais originais e atrativos das Comunidades fundadas no pós-II Guerra Mundial foi a assumida renúncia à realpolitik, ou seja, à política de poder tal como esta tinha sido praticada na Europa nos últimos três séculos. De facto, esta caracterizava-se não só por uma clara hierarquização dos Estados em matéria poder – daí a conhecida terminologia de grandes e pequenas potências –, como por um jogo diplomático-estratégico onde o conflito e a guerra estavam sempre latentes. A conhecida frase do general prussiano, Carl von Clausewitz, de que «a guerra é a continuação da política externa por outros meios», é, provavelmente, a que melhor capta esta forma de relacionamento belicosa entre os europeus.

Ligada a uma renúncia da política de poder, as Comunidades implementaram uma forma de funcionamento original, usualmente designada por método comunitário. Entre outras características, este baseou-se numa relação muito mais paritária entre os Estados do que a tradicional hierarquia entre grandes e pequenas potências considerava ser o relacionamento natural entre os Estados. Esse método inovador surgiu associado a órgãos supranacionais, os quais deviam zelar pelos interesses do conjunto europeu e não pelos interesses nacionais particulares, o mesmo é dizer dos interesses das grandes potências. Para além disso, foram criados mecanismos de ajuda financeira aos países e regiões mais pobres, com algum tipo de problema estrutural de desenvolvimento, ou  afectados por crises setoriais graves.

Toda esta forma de funcionar – a qual é o grande cimento histórico da União Europeia – e que deixava transparecer uma forma de funcionamento solidária, fosse ela genuína ou interessada, tem sido ultimamente posta em causa como vou mostrar em seguida. No quadro institucional da União Europeia, o Conselho, é, por excelência, o órgão onde os diferentes interesses e pontos de vista nacionais devem ser projetados. Por esta razão, é fácil de entender que a forma como se decide no Conselho, e o peso de cada Estado na decisão, são o melhor barómetro para avaliar o seu carácter, paritário ou hierarquizado. Num sistema ideal, perfeitamente paritário e solidário, entre grandes e pequenos Estados, prósperos e menos prósperos, teríamos um processo de votação onde todos tenderiam a ter similar peso político.

Desde o Tratado de Nice que, em nome do aumento da eficácia do funcionamento da União, o processo de deliberação por maioria qualificada sofreu várias alterações. A deliberação por maioria qualificada  implica que nem todos os Estados precisam de estar de acordo para ser adoptada uma determinada medida. Devo dizer, que, por princípio, não me parece criticável esta forma de decidir. O preço do consenso total (unanimidade) certamente seria elevado e muitas vezes levaria à impossibilidade real de ser tomada qualquer decisão, ou seja, ao bloqueio. O problema não é, por isso, o de ser mau tomar decisões por maioria qualificada, mas o princípio tem riscos: um Estado soberano pode ver-se obrigado por uma determinada  medida sobre a qual está em desacordo. Todavia, esse risco é algo que necessariamente terá de existir num processo ambicioso de integração. Assim, a questão que me parece importante, e que realmente vale a pena discutir, é a do peso relativo de cada Estado nesse processo de decisão e do sentido da evolução do sistema de votação em termos de poder.



Sistema de votação por maioria qualificada do Tratado de Maastricht

(funcionou até 1 de Maio de 2004)
Estados-membros (UE 15)
Nº  votos
Alemanha, França, Itália e Reino Unido
10
Espanha
8
Bélgica, Grécia, Holanda e Portugal
5
Áustria e Suécia
4
Dinamarca, Irlanda e Finlândia
3
Luxemburgo
2
Total
87
Aprovação por maioria qualificada com 62 votos (± 71, 3%)


Tomemos como exemplo o caso português, o qual nos interessa mais diretamente, e vejamos a evolução comparativa do peso da votação com a Alemanha, a França e o Reino Unidos (os Estados mais populosos e economicamente mais fortes da UE – na linguagem tradicional política, as grandes potências) e também com a Espanha, pela sua proximidade histórica e geográfica. Repare-se nas seguintes equações simples que traduzem, de alguma forma, o peso relativo dos Estados nesse processo de votação:

I. Tratado de Maastricht
Portugal 5 votos em 87 [peso na votação total = 0,05]
Alemanha: 10 votos [peso relativo de Portugal = 0,50]
França: 10 votos [peso relativo de Portugal = 0,50]
Reino Unido: 10 votos [peso relativo de Portugal = 0,50]
Espanha: 8 votos [peso relativo de Portugal = 0,62]

II. Tratado de Nice
Portugal: 12 votos em 345 [peso na votação total = 0,03]
Alemanha: 29 votos  [peso relativo de Portugal = 0,41]
França: 29 votos  [peso relativo de Portugal = 0,41]
Reino Unido: 29 votos  [peso relativo de Portugal = 0,41]
Espanha: 27 votos [peso relativo de Portugal = 0,44]

III. Tratado de Lisboa
Portugal:10,5 ml/hat. em 492,8 [peso na votação total = 0,02]
Alemanha: 82,4 ml/hab. [peso relativo de Portugal = 0,12]
França: 62,8 ml/hab. [peso relativo de Portugal = 0,16]
Reino Unido: 60,4 ml/hab. [peso relativo de Portugal = 0,17]
Espanha: 43,7 ml/hab. [peso relativo de Portugal = 0,24]

A explicação oficial dada pelas autoridades europeias e pelos governos nacionais para a reforma das instituições e do processo de votação no Conselho é que este resulta dos alargamentos de 2004 e 2007, os quais levaram a UE de 15 a 27 Estados-membros. Naturalmente este argumento tem fundamento como, aliás, é fácil de comprovar. Todavia, há um segundo argumento que é normalmente omitido, ou, pelos menos, deliberadamente desvalorizado, como se fosse um aspecto menor. Mas não é. Esse argumento reside no facto de os grandes Estados (sobretudo Alemanha, França e Reino Unido), terem considerado inaceitável a forma de funcionamento instituída em Maastricht numa União alargada. Esta era demasiado paritária e solidária entre «grandes» e «pequenos» Estados, não projetando, na tomada de decisão do Conselho, a hierarquia de poder que estes consideravam natural.

O Tratado de Nice, negociado em 2000 no âmbito da presidência francesa da UE, foi um primeiro passo nesse esforço dos grandes Estados para restabelecer a ordem natural da hierarquia de poder. Apesar de tudo, foi considerado ainda insatisfatório, pois, embora a diferenciação se tenha começado a efetuar pelo novo número de votos atribuídos cada Estado, este não foi considerado suficiente, por demasiado paritário. (Permanece em vigor até 2014, por disposição transitória do Tratado de Lisboa).


Sistema de votação por maioria qualificada instituído do Tratado de Nice

(em funcionamento desde 1 de Maio de 2004)
Estados-membros (UE 27)
Nº  votos
Alemanha, França, Itália e Reino Unido
29
Espanha e Polónia
27
Roménia
14
Holanda
13
Bélgica, Grécia, Hungria, República Checa e Portugal
12
Áustria, Suécia e Bulgária
10
Dinamarca, Eslováquia, Finlândia, Irlanda e Lituânia
7
Chipre, Eslovénia, Estónia, Letónia e Luxemburgo
4
Malta
3
Total
345
A aprovação por maioria qualificada quando:
i)      uma maioria dos Estados-membros votar a favor (em certos casos uma maioria de dois terços);
ii)     existe um mínimo de 255 votos a favor da proposta (± 73,9%)
OBS: qualquer Estado-membro pode solicitar a confirmação de que os votos a favor representam pelo menos 62% da população da UE. Se este não for o caso, as decisões não serão adoptadas.

Uma das ironias da história é que coube a um pequeno Estado – Portugal – o «privilégio» de celebrar, com entusiasmo, através do Tratado de Lisboa, a futura hierarquia (e reforço da primazia) das grandes potências na UE, estabelecida sob o aparentemente irrepreensível critério da população. Assim, o futuro sistema de votação prescinde dos votos até agora atribuídos a cada Estado, passando a converter diretamente a população de cada país em peso político para a votação por maioria qualificada. Nada de mais democrático em termos de decisão, poderá pensar-se.



Sistema de votação previsto pelo Tratado de Lisboa

(é essencialmente o mesmo do Tratado Constitucional Europeu)
A) Aprovação por maioria qualificada
55% dos membros do Conselho, incluindo, pelo menos, 15 dos Estados-membros
+
65% da população da UE

B) Minoria de bloqueio
Pelo menos 4 Estados-membros
+
35% da população da UE


Todavia, há aqui uma flagrante coincidência entre o princípio democrático da população e a lógica de poder da realpolitik. Quando olhamos para o topo deste ranking demográfico (onde Portugal ocupa o 10º lugar, praticamente em paridade com a Bélgica, a República Checa e a Hungria), verifica-mos que este reflete, de forma quase perfeita, aquele que é o usual entendimento da hierarquia de poderes na UE: 1º Alemanha, 2º França, 3º Reino Unido, 4º Itália (depois a Espanha em 5º e a Polónia em 6º). Aumentou a democraticidade na decisão, ou aumentou a expressão da política de poder na construção europeia?


A população dos Estados-membros da UE

Estado-membro
População
(milhões de hab.)
% da população da UE (27)
Alemanha
82,438
16,73%
França
62,886
12,76%
Reino Unido
60,422
12,26%
Itália
58,752
11,92%
Espanha
43,758
8,88%
Polónia
38,157
7,74%
Roménia
21,61
4,38%
Holanda
16,334
3,31%
Grécia
11,125
2,26%
Portugal
10,57
2,14%
Bélgica
10,511
2,13%
República Checa
10,251
2,08%
Hungria
10,077
2,04%
Suécia
9,048
1,84%
Áustria
8,266
1,68%
Bulgária
7,719
1,57%
Dinamarca
5,428
1,10%
Eslováquia
5,389
1,09%
Finlândia
5,256
1,07%
Irlanda
4,209
0,85%
Lituânia
3,403
0,69%
Letónia
2,295
0,47%
Eslovénia
2,003
0,41%
Estónia
1,344
0,27%
Chipre
0,766
0,16%
Luxemburgo
0,46
0,09%
Malta
0,404
0,08%
UE (27)
492,881
100,00%
A (re)entrada da política de poder nas questões europeias não é apenas visível no processo de reforma das instituições e da decisão no Conselho. Numa outra área – a das consultas à população para ratificação dos Tratados –, é também notório que esse processo está em marcha há já algum tempo. Repare-se no contraste flagrante das soluções políticas para o «não» em França, em 2005, ao Tratado Constitucional Europeu (TCE), e o «não» na Dinamarca, em 1992, ao Tratado de Maastricht, ou o mais recente não da Irlanda, em 2008, ao Tratado de Lisboa. No caso da França, o TCE foi, ainda que quase só na aparência formal, abandonado. Razão de fundo: era politicamente impossível pressionar França – um grande potência da UE –, a efetuar um exercício de cosmética democrática que seria ter de efetuar um novo referendo, no ano seguinte, sobre o mesmo assunto.

Pequenos países como como Dinamarca e a Irlanda não levantam esse constrangimento democrático. Solução óbvia na lógica da realpolitik: pressionar esses Estados para que, mantendo na aparência da atitude voluntária deste e de uma negociação paritária (oficialmente, na União, a política de poder não existe...), repitam esse referendo, de modo a que o «sim» seja, de uma forma ou de outra, obtido. Quer dizer, na prática política europeia está a ganhar raízes o princípio de que, pelo menos para os pequenos Estados, o «sim» é o único sentido voto aceitável ao dispor do cidadão nas questões europeias. Sob este prisma, o atual diretório franco-alemão que dirige a União é a evolução «natural» de um processo com origens, pelo menos, há uma década atrás, e não um acaso gerado pela crise económico-financeira de 2007/2008. 

José Pedro Teixeira Fernandes

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