Este livro não tem por objectivo último ser lido por um público de perfil académico ainda que lhe possa e deva interessar também. No universo relativamente limitado da língua portuguesa, existem, com mais ou menos qualidade, bastantes publicações de perfil académico-científico sobre a Europa e o processo de integração europeia. Paralelamente, é fácil verificar que há um grande vazio de publicações com o objetivo de chegar a um público mais vasto procurando manter, ao mesmo tempo, rigor analítico e não disfarçando as opções ideológicas do autor sob a capa do carácter técnico-científico do assunto. Se outro argumento não houvesse para a importância de escrever para fora da academia, bastaria recordar que este público mais abrangente, onde se insere a grande maioria dos cidadãos, é, necessariamente, o sustentáculo de qualquer democracia.
A Europa está em crise financeira e económica, mas a crise tem raízes profundas e anteriores aos acontecimentos de 2007/2008 que a desencadearam. A complexidade técnica do funcionamento da União, sendo, em si mesma, verdadeira, tem sido demasiadas vezes usada, e não invulgarmente exagerada, com o objectivo de evitar um debate intelectual e político verdadeiramente aberto sobre o caminho para a seguir. O intuito não declarado é o de estreitar, se não mesmo de eliminar, a possibilidade real de escolha dos cidadãos, gerando a ideia da «inevitabilidade» de uma determinada opção económico-política. Considero ser um dever de cidadania desmistificar a pobreza intelectual e política em que esta ideia assenta.
Para uma geração com memórias vividas os últimos anos do regime ditatorial, que conheceu os trágicos efeitos do prolongamento anacrónico do império colonial e a perpetuação do país entre os menos desenvolvidos da Europa, a integração nas Comunidades Europeias/União Europeia trouxe, acima de tudo, uma grande esperança no futuro. Trouxe também a possibilidade de um novo rumo em conjunto com outras nações da Europa. À União Europeia se deve, numa parte que não é menor, a estabilização do regime democrático saído da revolução de 1974, e, sobretudo, o aumento das oportunidades de melhoria das condições económicas e sociais da população portuguesa, o que certamente não é pouco.
Todavia, este reconhecimento – que é justo e devido –, não pode, nem deve, ser usado como normalmente tem sido pela maioria da elite intelectual, económica e política, portuguesa e europeia, para legitimar atitudes de «despotismo iluminado». Esta forma redutora de pensar e atuar alimenta a ideia da inevitabilidade de um caminho e traduz-se nos slogans mediáticos de «pôr a Europa a andar» e de «mais Europa». Estes, como quaisquer slogans, tendem a gerar automatismos de conduta e a inibir o pensamento crítico. Mais: pretende dar uma aparência de normalidade democrática à tendência da elite dirigente europeia apenas se sentir obrigada a respeitar a vontade popular na medida em que esta se conforme com o que foi por si predeterminado.
A pobreza da linguagem política habitualmente usada, que tende a reduzir, de forma grosseira, o espectro político a europeístas e eurocéticos, acentua, ainda mais, esta abordagem política redutora e extremamente questionável do ponto de vista democrático. A visão instituída a preto e branco sobre a questões europeias faz lembrar a linguagem política que predominou na Europa até meados do século XX (em Portugal até aos anos 70), onde quem não partilhava de uma determinada visão de pátria era tendencialmente visto ou rotulado como traidor. Paradoxalmente, o atual discurso sobre a Europa que se pretende bem mais esclarecido, denota similar quadro mental redutor. Transformou a antiga dicotomia patriota/traidor na nova dicotomia de europeísta/eurocético, onde o eurocético ocupa, embora numa linguagem mais light, o lugar deixado vago pelo arcaísmo do traidor à pátria.
Algumas coisas parecem ser claras para um verdadeiro regresso da política num quadro democrático e pluralista, quer a nível nacional, onde o problema começa por se levantar, quer a nível europeu, onde o problema adquire uma intensidade acrescida e particularmente preocupante. A primeira é que as forças políticas não podem ser elas próprias a esvaziar o político. Parece absurdo mas é o que está a acontecer. O caso português é bem exemplificativo dessa atitude (auto)esvaziadora. Sendo muitas das decisões hoje tomadas a nível europeu, não faz sentido que estas sejam matéria de consenso entre os partidos de poder. Na prática, esse consenso significa não só uma despolitização dessas questões – que, de forma falaciosa são rotuladas de técnicas e apresentadas como «caminho único» –, como retira ao eleitorado reais opções de escolha. Mas, se é assim, qual é o papel dos partidos?
Este auto-esvaziamento, o qual é, também, uma forma de desligitimização dos próprios partidos, assenta numa imagem do passado onde as questões europeias são política externa. Na realidade, hoje são cada vez mais questões de política interna, pelas sucessivas transferências de soberania operadas para as instituições da União. Mas há um outro aspecto que explica o esvaziamento do político, o qual está relacionado com o colapso do modelo socialista-comunista soviético. A partir daí gerou-se a vulgata do «fim da história» e do consequente fim das ideologias. A combinação democracia + capitalismo seria a forma final governo humano à qual todas as sociedades estariam destinadas a sucumbir. Na realidade, o que hoje assistimos é a uma perigosa dissociação do capitalismo face à democracia, mostrando este conviver bem com o autoritarismo político – a China é o exemplo óbvio.
Quanto à União Europeia, está hoje refém dum modelo esgotado de integração (neo)liberal e de uma globalização onde se dissipa o seu bem-estar. Mas a União tem muito para se queixar de si própria! Face à impossibilidade de instituir, à partida, uma unificação política de tipo federal, usou a integração económica e o imperativo da competitividade na globalização, para atingir o seu objectivo unificador. A unificação europeia, acreditou-se, seria feita pelos mercados através de um modelo económico de tipo (neo)liberal, o qual seria fonte de bem-estar para o cidadão e favoreceria a vontade de união política. Consequência atual: é impossível atacar a visão dogmática do supremo valor dos mercados, submetendo-os à vontade política democrática e ao bem comum, sem por em causa esta Europa.
José Pedro Teixeira Fernandes
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